A CATEDRAL

A CATEDRAL

Haroldo Figueira. 

 Estamos em julho, mês em que se comemora a festa de Sant’Ana, padroeira da cidade de Óbidos. De minha parte, não há, neste período, como evitar que o pensamento ganhe asas e revisite o lugar que me serviu de berço, colocando-me em conexão com esse tradicional evento religioso e social tão caro para os obidenses em geral e tão carregado de ditosas lembranças para os nativos que, como eu, encontram-se distantes.

Não é minha intenção falar, aqui, da festividade em si e das atividades a ela relacionadas. Já fiz isso em outra oportunidade. Meu propósito é discorrer sobre o santuário onde as celebrações litúrgicas acontecem ou, mais objetivamente, sobre a centenária catedral erguida em homenagem àquela a quem Deus concedeu a graça de ser a mãe da Mãe de Jesus.

Assentada em um platô intermediário dentro do relevo um tanto acidentado da sede do município, localizada a pouco mais de cem metros da ribanceira que se ergue às margens do Amazonas - e que funciona como uma espécie de mirante natural do caudaloso curso d’água – a igreja desponta como a principal referência visual para os viajantes que, navegando de barco, aproximam-se da Cidade-Presépio, subindo o rio.

Sua arquitetura segue o padrão dos templos católicos da época colonial. A bela edificação iniciada no século XVIII, com modificações no desenho original, apresenta-se ao meu olhar de leigo como uma estrutura de alvenaria que começa retangular, mas que, no alto, ganha a forma de um triângulo, ladeada, à esquerda e à direita, por duas torres que se prolongam além do vértice da fachada frontal.

Internamente, é bem possível que alguma coisa de físico tenha sido alterada com o passar do tempo. A lembrança que guardo, porém, dá conta de uma nave ampla; de uma espécie de mezanino destinado ao coro na entrada do prédio; de altares esculpidos nas paredes laterais abrigando imagens de santos como as de São José, Santo Antônio, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e, do Senhor Morto deitado em seu esquife. Alojada em um nicho que se eleva acima o altar-mor, a estatueta de Sant’Ana ensinando passagens da Sagrada Escritura à sua bem-aventurada Filha destaca-se sobranceira.

A descrição do interior do templo remete-me, momentaneamente, à rica mitologia amazônica. Reza a lenda que, debaixo do prédio sacro é mantida, aprisionada, uma gigantesca e temível serpente: a Cobra Grande. Anteriormente à atual configuração interna, havia um majestoso altar-mor que foi demolido para adequar-se às orientações arquitetônicas emanadas do Concílio Vaticano II. Certa vez, antes da demolição, essa antiga estrutura apresentou rachaduras. Para os entendidos em construção, uma ocorrência normal. Para a população humilde, sinal de que o monstruoso animal existe e de que se movimentou.  

São muitos e variados os vínculos sentimentais que me atrelam a esse monumento da fé católica. Nele fui batizado, crismado, fiz a primeira comunhão e casei-me. Ali me foi ministrada, portanto, a quase totalidade dos sacramentos que, de acordo com a doutrina do credo que professo, um cristão não vocacionado para a atividade sacerdotal credencia-se a receber antes do final da vida.

Quando menino, pertenci à equipe de coroinhas da matriz. Recordo que disputava com outros garotos a oportunidade de fazer repicar os sinos instalados no alto de uma das torres. Havia concorrência, ainda, para recolher brasas para os turíbulos na vizinhança e até para fugir dos ataques da temida caba da igreja, variedade de marimbondo, de ferroada dolorida, que utilizava o campanário para fazer seus ninhos. Nessa condição, servi nas missas matinais das 06:00 horas, nas dominicais em horários diferentes e nas novenas noturnas. Auxiliei celebrantes como Frei Rogério, Frei Rodolfo e Frei Prudêncio, entre outros.

Orgulho-me de um feito extraordinário na minha carreira de acólito. Tive a honra de participar daquela que, na minha opinião, foi a mais solene das celebrações eclesiais que a comunidade obidense presenciou. Refiro-me à cerimônia de elevação de Óbidos à categoria de prelazia, em 10 de abril de 1957. Vez por outra, o filme desse acontecimento memorável roda em minha cabeça.

Visualizo mentalmente, então, o templo apinhado de gente piedosa, do local e das circunvizinhanças. Ecoam nos meus ouvidos: a leitura da bula pontifícia pelo emissário de Pio XII; as palavras proferidas em latim na missa concelebrada por vários sacerdotes; a homilia empolgante de D. Floriano Loewenau que, na oportunidade, sagrou-se bispo prelado; os hinos de louvor entoados pelo coral sob a regência e acompanhamento no órgão do competente maestro Frei Pedro.

Falar em D. Floriano é rememorar com carinho a figura de um grande homem, um diligente pastor, um excepcional administrador. Não conheço absolutamente ninguém que tenha feito mais por Óbidos - aí incluídos agentes públicos ou representantes da iniciativa privada - que o sacerdote alemão. Ele simplesmente amava o povo obidense. E era correspondido. Por isso, folguei muito com a feliz decisão de transladarem seus restos mortais para serem sepultados em terras pauxiaras, reservando para tanto, o mais apropriado dos espaços: o subsolo da catedral de Sant’Ana, espaço onde, por anos a fio, pregou a palavra de Deus. Ali ele está em casa e poderá receber, permanentemente, a meritória veneração das ovelhas que apascentou.

A grande maioria do público que aflui ao santuário situado à Praça Barão do Rio Branco, não o faz movida por curiosidade histórica ou motivação turística. Vai lá para exercitar sua espiritualidade. Na temporada festiva que se inicia com a romaria do círio no segundo domingo de julho e termina no dia 26 do mesmo mês, a igreja receberá milhares de devotos. Pessoas que se propõem a louvar e agradecer a Deus por suas existências, pelas graças recebidas e também rogar a bênção, a proteção e a misericórdia do Pai, para si, seus parentes e amigos. Têm consciência de que podem fazê-lo diretamente, mas não abrem mão da ação medianeira da mãe e padroeira Sant’Ana.

Tomei conhecimento de que a catedral passa por reformas. Dizem que está ficando muito bonita e confortável. Que bom! Preservar edifícios históricos é demonstração de civilidade e também de consideração e respeito para com as tradições culturais de um povo. Transforma-se em gesto de amor e de fé quando o alvo desse zelo é uma casa de oração tão querida como o é o santuário de Sant’Ana. Parabéns ao atual bispo diocesano e aos abnegados frades franciscanos responsáveis pela iniciativa! Parabéns à comunidade católica de Óbidos!

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