GUARDIÃS

GUARDIÃS

Lucia Helena Alfaia de Barros¹.

Neste abril do ano 2020, elas acordam com a sinfonia dos sabiás e bem-te-vis que causam alvoroço em nuvens, janelas, telhados e deixam o sol e a chuva desorientados, com a velocidade de suas asas. Observam altivas, o ir e vir de pedestres e carros apressados. Conhecem os aromas que surgem com passos ligeiros, àqueles soprados pelas janelas dos prédios.

Posicionam-se conforme os protocolos do Ministério da Saúde: cada uma em seu quadrado pintado de cal. Trocam olhares, energias, histórias. Balançam braços viçosos, acolhedores, e comungam silenciosamente do cotidiano à sua volta.

Cumprem há anos o isolamento social do seu verdadeiro habitat que é fortuitamente interrompido pela fauna que se arrisca a viver na cidade grande: um roedor aqui, um doguinho que alivia suas necessidades acolá, a assembleia de última hora de periquitos maracanãs ao cair da tarde, para a aprovação do roteiro de viagem...Vivências coletivas de décadas...em todas as estações.

Curiosas, testemunham algo inesperado: humanos não buscam abrigos em suas sombras; seus frutos esqueceram o susto que levam quando são chacoalhados pelos balanços fortes dos apanhadores; cachorros não fazem mais seu xixi diário em seus pés. Tudo ficou vazio e até o silêncio soa estranho. O tempo, aquele senhor sábio, passa devagar e olha para todos com muita soberba.

Do alto de suas copas largas, avistam olhares pensativos e incertos. Enxergam pensamentos flutuantes que de soslaio, promovem “lives” pontuais para os encontros em varandas, portões e janelas conforme as alturas dos prédios. E assim entreolham-se fazendo perguntas: “o que aconteceu?” E ao mesmo tempo sábias como são, respondem: “agora eles olham a natureza e ouvem até os sons de seu próprio corpo”.

Seus troncos fortes e grossos recebem e emanam energias de descanso para quem só olhava o relógio do pulso ou celular e não conseguia conectar-se consigo e com os outros. Agora, essas pessoas iniciam sua (re)conexão e elas, as do tronco forte e frondosas, começam a respirar esse sentimento.

Como estão em muitos lugares, ensinam que para enxergar a natureza interna e externa requer tempo, atenção e dedicação cotidiana. E foi necessário vir algo de fora, bem de longe, para apresentar-se de forma abrupta, letal, sem pedir licença. Guardiãs do asfalto e de muitos quintais, as mangueiras agora espiam para os humanos e com seus abraços acolhedores (gesto apreciado por muitos, mas sem prazo para fazê-lo), balançam seus galhos ao som dos ventos e repetem em uníssono todos os dias a cada balanço: “ vai passar... vai passar... vai passar...”.

[1] É docente dos anos iniciais do Ensino Fundamental da Rede Estadual de ensino em Belém-Pará e Estudante do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Sociocultural do Museu Paraense Emílio Goeldi. Email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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