SANT’ANA (MÃE, MESTRA OU GUIA?)

SANT’ANA (MÃE, MESTRA OU GUIA?)

Célio Simões

Vou incursionar por um tema de certa complexidade, que é tentar definir o tipo iconográfico da protetora dos obidenses, a santa da predileção da Igreja na época da Contra-Reforma e a mais cultuada no Brasil Colônia – a mãe da mãe de Jesus, padroeira de todas as avós do universo.

A minha experiência nos meandros da prática religiosa é parca. Porém uma incursão nas Sagradas Escrituras nos mostra que Ana, na aflição da esterilidade que lhe tirava o privilégio da maternidade, se dirigiu com fervorosa oração ao Senhor e fez promessa de consagrar ao serviço de Deus a futura filha.

Obtida a graça, levou-a a Silo, onde estava guardada a arca da aliança e a confiou ao sacerdote Eli, após tê-la oferecido ao Senhor. Tomando isso como ponto de partida o protoevangelho de Tiago, apócrifo do século segundo, traça a história de Joaquim e Ana, pais da Virgem Maria. A piedosa esposa de Joaquim, após longa esterilidade obteve do Senhor o nascimento de Maria, que aos três anos levou ao Templo, deixando-a ao serviço divino, cumprindo o voto feito.

O fundamento histórico provável, embora na discordante literatura apócrifa, é de algum modo revestido de elementos secundários, copiados da história da mãe de Samuel. O entendimento é confuso. Mas, faltando no Evangelho qualquer menção aos pais de Maria, não há outra fonte senão os apócrifos, nos quais não é impossível encontrar, entre predominantes elementos, alguma informação autêntica, recolhida por antigas tradições orais.

O culto para com os pais da Virgem Maria é muito antigo, dos gregos sobretudo. No Oriente venerava-se Sant’Ana no século VI, e tal devoção estendeu-se lentamente por todo o Ocidente a partir do século X até atingir o seu máximo desenvolvimento no século XV.

Em 1584 foi instituída a festividade de Sant’Ana, enquanto São Joaquim era deixado discretamente de lado, talvez pela própria discordância sobre o seu nome que se revela em outros escritos apócrifos, posteriores ao protoevangelho de Tiago. Além do nome de Joaquim, ao pai da Virgem Maria é dado o nome de Cléofas, de Sadoc e de Eli.

Qual seria o autêntico? Os dois santos eram comemorados separadamente: Sant’Ana a 25 de Julho pelos gregos e no dia seguinte pelos latinos. Em 1584 também São Joaquim achou espaço no calendário litúrgico, primeiro a 20 de março, para passar ao domingo da oitava Assunção em 1738, em seguida a 16 de agosto em 1913 e depois reunir-se com a esposa no novo calendário litúrgico, no dia 26 de julho. Pela santidade do fruto (Maria), deduzimos a santidade dos pais (Ana e Joaquim).

Em que pese a dificuldade de assimilação, vamos em frente na consecução do objetivo deste texto. Os obidenses cultuam Sant’Ana Mestra ou Sant’Ana Guia? Que importância ou diferença tem isso?

Toda escultura traduz uma linguagem estética. Justifica-se e até explica-se, por tal motivo, a polêmica que se instalou sobre o ícone erguido na Praça Barão do Rio Branco, em frente à Catedral obidense, que dividiu opiniões desde sua inauguração, pelas formas incomuns da expressão facial de mãe e filha, produto do subjetivismo do artista. A imagem é feia? É aceitável? Paciência, mas foi o que o escultor conseguiu fazer, embora o resultado final divirja por completo da expressão iluminada, suave e doce que estamos acostumados a ver.

Abstraindo o direito individual de crítica que cada um tem, pesquisas mais acuradas dirimem razoavelmente a questão principal aqui abordada. Se a própria imagem de Sant’Ana evoca e exprime a ternura de MÃE, por exclusão restaria definir a diferença iconográfica entre Sant’Ana Mestra e Sant’Ana Guia.

Nesta última os afrescos nos mostram Maria sempre menina, até mesmo quando representada como se fora a miniatura de uma mulher, dando a entender que já tem idade e maturidade para assimilar os ensinamentos morais e religiosos que lhe eram destinados. Sant’Ana a segura pela mão e de todas elas, é a menos comum nos templos do mundo inteiro.

Já a imagem de Sant’Ana Mestra remonta ao século XIII ou um pouco antes e é originária da Inglaterra, valendo notar, neste caso, que o livro que ela carrega é seu principal atributo e isto pode ser constatado em quadros, medalhões, retábulos e altares nas Igrejas construídas em sua homenagem.

Quem já visitou as cidades histórias de Minas Gerais, se bem observou, Sant’Ana Mestra é representada sempre com o livro aberto nas mãos ou sobre o joelho. Estando em pé, a filha está em seus braços ou também em pé. Quando sentada (posição mais habitual), Maria está no seu colo ou também em pé ao seu lado.

Numa especulação mais audaciosa vale indagar: o que Sant’Ana ensinava a sua filha? Nunca vislumbrei no livro aberto da nossa Padroeira qualquer conteúdo, também não revelado em esculturas.

Nas seculares igrejas portuguesas, entretanto, há gravuras que revelam o sentido do ensinamento, haja vista conterem inscrições na parte um pouco inferior das estampas, quase ilegíveis, mas que fazem presumir que a religião e a virtude compunham a essência e a motivação maior da educação de Maria e esses valores deram forma e sentido às imagens de Sant’Ana Mestra, norteando os devotos do mundo todo em cultuá-la sem reservas.

Os obidenses o fazem em suas peregrinações a cada ano, no tempo que precede o mês de Julho, nas principais capitais da Amazônia. Observando-se melhor e mais acuradamente, penso que se trata de Sant’Ana Mestra. Se não for (o que só as autoridades da Igreja podem dizer) uma coisa é induvidosa: as entusiásticas comemorações à Padroeira se inserem nos festejos que dão especial colorido às férias de julho na Cidade Presépio, sem maiores preocupações estéticas com os detalhes abordados neste ensaio.

Em recente publicação, o brilhante historiador padre Sidney Canto, ilustre descendente de obidenses, divulgou o seguinte: “25 de Março de 1758 – Criação da Vila de Óbidos: O governador do Grão Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, instala a Vila de Óbidos (onde havia chegado em 22 do mesmo mês) e cria a paróquia de Sant’Ana em um dia de Sábado de Aleluia. O bispo dom Miguel de Bulhões nomeia como primeiro [vigário] da  Matriz de Sant’Ana o frei Francisco de Sales, religioso da Ordem Carmelita e natural do Estado do Pará”. Esse fato constitui um relevante marco na história política e religiosa do nosso Município.

A Paróquia (atual Diocese), desde seus primórdios, adotou como sua padroeira a avó de Cristo, para honra dos seus devotos e a alegria de quem anualmente se reúne para homenageá-la com festas religiosas ou profanas. É quando a Cidade Presépio sai de sua habitual quietude e se envolve num clima eletrizante de humana confraternização, num engajamento coletivo equivalente aos seus desfiles carnavalescos, já famosos em todo o Pará.

Milton Nascimento, ao magistralmente interpretar a canção “Cálix Bento”, homenageou a “Gloriosa Matriarca” e sua filha Maria, ambas inspiradoras do culto mariano no Brasil dos séculos XVII e XVIII. E o baiano João Álvares Soares, no distante ano de 1733 resumiu sua grande devoção numa única, bela e insuperável frase: “SANT’ANA É A SINGULAR MESTRA DA PERFEIÇÃO EVANGÉLICA”.

 

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