Lúcia Helena Alfaia*.
À tardinha, com as badaladas do relógio da torre da matriz, ela aparecia perfumada de alfazema na porta do casarão, com seu vestido estampado e sentada na cadeira de balanço. No pescoço trazia a circunferência do talco, passado com pluma suave; nas mãos, segurava o bastidor de sua arte, tecida sutilmente com linhas multicores e agulhas.
Cantarolava acalantos embalados pelos desenhos riscados com os olhos; criava vidas nas cambraias brancas dos enxovais recém-nascidos, moldados por suas mãos, e serena, fertilizava amores e festas.
A pequena senhora tinha cabelos branco-nuvem e seus passos arrastavam o tempo nas lajotas vermelhas; as lentes de seus óculos tinham pigmentações esverdeadas; seus braços eram longos e cheios de sinais cor de casca de tamarindo.
Quando podia, conversava com os passantes saudando - lhes com um “salve” ao entardecer. Morava na rua perto da praça de onde se avistava a torre da Igreja, esquina da rua dos bacurizeiros e de lá do seu canto, enxergava o tempo, alto e desenhado por grandes ponteiros. Sabia dos horários da missa, das fornadas do pão de Santo Antônio, das alvoradas, ouvia sorrisos dos pequenos estudantes que saíam da aula de reforço e movia seus olhos d’água para as novidades da cidade.
Vez ou outra descia para a calçada maior e narrava fatos de suas vivências pelas ruas estreitas e silenciosas. A cadeira balançava, confirmando a artesania experimentada com o passar dos tempos. Tinha um cesto de fibras arrumado no banco de madeira e dentro dele, linhas de algodão entrelaçadas bailavam com a brisa da esquina, certamente fios encantados, tramados em flores, folhas e outros desenhos que só as mãos ágeis da bordadeira imaginavam e faziam.
Em alguns momentos, pensava-se que as linhas de suas agulhas eram seus cabelos, tamanha a delicadeza que confundia os olhares mais atentos. Usava o dedal de forma que a cada tecido bordado de algodão ou linho, as laçadas e pontos cheios concebiam melodias de ninar, para embalar os afagos noturnos.
A velha bordadeira tinha o olhar verde-água, imenso e distante como os mares nunca vistos na pequena cidade; veio à terra para embalar insônias, inclusive as de Neruda, ocasionadas na noite na ilha, ou as de mães solteiras, registradas nas cartas de Anzaldúa. Afinal, bordar vidas era para mulheres de espírito farto e de mãos sabidas, como as dela.
Com a chegada das férias, a rua do casarão festejava diuturnamente, exibindo o brilho dos fogos no céu, o som de canções amigas que reuniam encontros e despertavam os sonos mais pontuais e rotineiros. Nessas tardes - noites, a senhora dos cabelos brancos tudo ouvia e via, até as brilhantes luzes do parque de diversões, que divertiam gerações.
Ao longo dos dias, cardumes de escamas reluzentes subiam a ladeira em feixes amarrados aos remos dos pescadores, e passavam na lateral da casa do canto; carros - som desciam anunciando bailes nos clubes da cidade e perto da janela de seu quarto, a senhora sentia o cheiro inebriante da pipoca, quentinha, que passava para divertir-se no arraial.
Nas imediações da casa do canto morava uma menina que nas tardes de lazer, tagarelava frases soltas no passeio da tarde e passava naquela esquina às vezes à pé, outras de bicicleta, acompanhada de seus colegas, e cumprimentava a senhora, pois queria ver de perto os graciosos flocos de algodão que compunham seus cabelos, pousados numa cadeira verde, trançada com fios espaguete.
Ao longo do passeio, alguns perguntavam se a bordadeira realmente existia ou aparecia de vez em quando para sorrir com a molecada, pois a cada roupa ornada paria um anjo e num gesto espiralado, sumia da porta do casarão… talvez tivesse asas e transformasse cada bastidor em guias de viagem… quem sabe plantava as flores que desenhava em seu quintal…
Após um período de sol e lua e percebendo que mais estrelas reluziam no infinito, a menina aprendeu que a bordadeira da esquina era primavera e a cada florada, perfumava a continuidade da vida com as luzes do pôr-do-sol.
* Crônica da obidense Lúcia Helena Alfaia de Barros publicada na coletânea da Revista África e Africanidades, que oportuniza escritoras e escritores brasileiros e de outros países, a publicarem seus escritos.
** Lúcia Helena Alfaia de Barros, é obidense, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Diversidade Sociocultural - Museu Paraense Emílio Goeldi - MPEG, Belém Pará. É docente da Rede Estadual de Educação do Estado do Pará – SEDUC. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
***As frases em itálico, são trechos dos livros de Conceição Evaristo (Olhos D´água), Pablo Neruda (Noite na ilha) e Glória Anzaldúa (Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo).