TERÇA DA CULTURA POPULAR: “Duas Caras”, artigo de Célio Simões

TERÇA DA CULTURA POPULAR: “Duas Caras”, artigo de Célio Simões

Célio Simões (*)

O notável escritor, filósofo, professor, romancista, artista plástico, ensaísta, poeta, político, advogado e imortal da ABL Ariano Suassuna, um dos maiores nomes da literatura brasileira, em uma de suas apresentações, narrou que certa vez uma senhora indiscreta, ao saber que ele era do signo de Gêmeos, teria afirmado que todo “geminiano” possui “DUAS CARAS”.

Apanhado de surpresa viu-se Suassuna confrontado com a crença que associa as pessoas de Gêmeos com o estereótipo de "duas caras", sinônimo de falsidade. de quem age sem firmeza de propósitos, sempre “acendendo uma vela a Deus e outra ao diabo”. De pronto, respondeu Ariano em tom jocoso:

- E você acha que se eu tivesse duas caras, eu usaria esta?...

A invertida demonstra a agilidade mental, a sagacidade e o bom humor do festejado dramaturgo paraibano, que de forma leve e inteligente, usou a vil acusação para engordar seu vasto repertório de situações cômicas.

Embora “DUAS CARAS” seja geralmente utilizada em sentido pejorativo, não se pode circunscrevê-la aos nascidos sob Gêmeos, signo que felizmente não tem o monopólio de albergar em seus limites cronológicos o tanto de gente falsa que existe em nossa volta, pois eles frequentam com desenvoltura e posando de sinceros, todas as demais faixas imaginárias do Zodíaco.

Atualmente não mais se discute a origem da expressão "DUAS CARAS". Remonta ela à dualidade inerente à natureza humana e ao vezo da manipulação, alcançando quem age com hipocrisia, falsidade e dissimulação, dependendo da situação. A expressão não tem uma origem única e pontual. Sofreu desenvolvimento gradual, encontrando paralelos em metáforas muito antigas, que evidenciam e desnudam a dualidade das pessoas. 

Exemplo mais remoto de “dupla face” foi o de Judas, ao entregar Jesus aos sacerdotes, não em troca de sinecuras, porém movido pela cupidez argentária de receber trinta moedas de prata. Ele era o tesoureiro do grupo e como tal, o responsável por administrar o dinheiro da comunidade de apóstolos, vendo na ignóbil oferta oportunidade imperdível de acumular riqueza pessoal, da qual, por sinal, sequer pode desfrutar, pois esmagado pelo peso do arrependimento resultante de sua vil traição, enforcou-se.

Séculos depois, Joaquim Silvério dos Reis repetiu nas Alterosas o gesto infame de Iscariotes, ao trair os inconfidentes em troca do perdão de suas elevadas dívidas com a Coroa portuguesa, aliado ao medo de perder sua patente militar de coronel e seu prestigiado status social. Como o apóstolo maldito, agiu por ganância, oportunismo e interesses pessoais, não propriamente por lealdade à Coroa Portuguesa ou convicção política. Estudiosos da ciência jurídica e da História admitem que a atitude do coronel Silvério dos Reis pode ser considerada a primeira "delação premiada" do Brasil, instituto jurídico através do qual o delator é recompensado por revelar o envolvimento de seus pares.

A colaboração ou delação premiada, pelo qual o investigado em um processo penal recebe benefícios em troca da deduragem. está prevista em diversas leis brasileiras e em qualquer delas, as informações do “colaborador” causam superlativo estrago, tanto que a protagonizada por Silvério dos Reis fulminou a Inconfidência Mineira e motivou o martírio de Tiradentes.

Há hipóteses, entretanto, que dão ensejo a acusações infundadas sobre alguém ter agido com “duas caras”. Como exemplo, vale lembrar o caso do ex-jogador Rui Rei, da Ponte Preta de Campinas (SP). Na partida final do Campeonato Paulista do de 1977 disputada com o Corinthians, uma das mais memoráveis da história pois o Coringão buscava encerrar um longo jejum de títulos do campeonato paulista, no terceiro e decisivo jogo, Rui Rei foi expulso no início da partida após uma discussão com o árbitro Dulcídio Bosquila.

E sem o seu principal artilheiro, a Ponte Preta foi derrotada por 1-0 e o Corinthians finalmente sagrou-se campeão. Por coincidência, no ano seguinte, Rui Rei foi contratado justamente pelo Corinthians, o que aumentou a desconfiança de que ele teria facilitado a vitória do seu novo clube, o que nunca foi provado, pois o jogador com veemência sempre negou esse fato, no que foi corroborado pelos demais jogadores da Ponte, assim finalmente se livrando de ser rotulado de “duas caras”.

É inevitável que essa repudiada expressão surja da observação do comportamento de indivíduos insinceros, que agem ao sabor da conveniência ou da situação que lhes parece mais favorável, fazendo jus ao rótulo de "falso" ou "hipócrita". A propósito, o vilão Duas-Caras do Batman, é um indicativo clássico dessa dualidade, com um lado bom e outro mau. Virou ele um dos mais famosos "Duas Caras" da nossa cultura, ajudando a popularizar o termo e consolidar a assertiva de que ter “duas caras" é próprio de alguém desonesto, sem decência e sem integridade moral.

O típico “duas caras”, exibe facetas contraditórias, marcadas pela hipocrisia (ostenta uma imagem, diversa do que é na verdade é), pela duplicidade (tem atitudes diferentes em contextos distintos), são vistos como os “morde-e-assopra” pelo povo, pois dizem uma coisa e fazerem outra, que estão “deste lado” mas também “do outro”, que são moralistas inflexíveis mas topam transigir, tudo, claro, em troca de vantagens, ainda que insignificantes.  

O tema é tão palpitante, que assegurou o êxito da novela “Duas Caras”, da rede Globo, exibida entre 2007 e 2008. Aguinaldo Silva caprichou na trama e alcançou grande invulgar sucesso de audiência abordando a história de um homem que, após roubar a fortuna da esposa, assume nova identidade. O enredo pode ser interpretado de várias maneiras, mas torna-se impossível não associá-lo à falsidade, mudança de comportamento, da ocultação de intenções, para concluir sobre existência de diferentes facetas da personalidade de cada um, dependendo da situação que enfrenta ou pretende enfrentar.

Para a Psicologia, a dupla personalidade pode ser resultado de experiências traumáticas ou mecanismos de defesa. Acredita-se que a pressão social pode levar pessoas a mostrar diferentes "caras", para de algum modo tirar proveito. A Filosofia exorta que a falta de autenticidade pode ser justificada pela dualidade do espírito humano. Entretanto, dúvida não resta que o selo de “duas caras” encerra impressão muito negativa sobre terceiro, associado que está à hipocrisia, à falsidade, à enganação, à dissimulação, ao disfarce e à capacidade de alguém se fazer passar por quem não é.

Na música, tal a expressão descreve um tipo de personalidade falsa, que assim age para enganar os outros, especialmente em contextos amorosos. Tais composições (existem várias na MPB) são frequentemente cantadas para expor a decepção em um relacionamento, quando uma pessoa descobre, sob o peso da decepção, que a outra não é quem parecia ser, sentindo-se traída em sua confiança. A música "DUAS CARAS" de Paula Mattos, usa essa metáfora para expressar a dor de descobrir a infidelidade do parceiro.

“A MINHA RAIVA É NÃO TER
AQUELA RAIVA DE VOCÊ
DEVE SER PORQUE NÃO DEU, PRA TE ESQUECER

SOFRO SABENDO QUE ERA SÓ UM TRUQUE
QUANDO BEIJAVA TIRANDO O LOOK
DÓI SABER QUE EXISTEM DUAS DE VOCÊ
UMA É O MEU AMOR A OUTRA É MEU DESPRAZER

QUEM É VOCÊ?
QUE TÁ AQUI NA MINHA FRENTE
A VERDADEIRA OU A QUE MENTE?
QUEM É VOCÊ?
QUE DÁ O CÉU E TIRA O CHÃO

A VERDADEIRA OU A QUE MENTE
A TOP 1 NA ILUSÃO
E O PIOR DE TUDO AINDA AMO ESSA DECEPÇÃO
VOCÊ É DUAS CARAS ZERO CORAÇÃO”

A paulistana Edna Frigato, famosa por seus poemas que exploram a profundidade das emoções humanas e a importância da autenticidade, sintetizou de forma magistral o que se deve pensar sobre esse tipo de gente: “O PROBLEMA DE CONVIVER COM PESSOAS DE DUAS CARAS É QUE A GENTE NUNCA SABE A QUAL DELAS NOS DIRIGIR, JÁ QUE AS DUAS SÃO FALSAS”.

Excelente reflexão, diga-se de passagem, para encerrar esta crônica, pois dificilmente poderíamos conceituar de modo mais exato esse abominável desvio de personalidade, como fez numa única e antológica frase, essa carismática pensadora e poetisa brasileira.

(*) CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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